Início COMUNIDADE EM PAUTA Caseiro morto por onça-pintada vira lenda e guardião do Pantanal em poema

Caseiro morto por onça-pintada vira lenda e guardião do Pantanal em poema 3s645j

44
0
Google search engine

Em poema, escritor reimagina como teria sido a relação entre o pantaneiro e a onça-pintada. 566h2v

1h6153

Adriano Fernandes

O trabalhador Jorge Avalo, de 60 anos, morto por uma onça-pintada no Pantanal, virou lenda nas palavras do escritor Carlos Gentil Vasconcelos. O autor transformou o “encontro de Jorge e a onça” em poema que reimagina como teria sido a relação entre o caseiro e o felino.

Design sem nome 2025 04 23T161449.756
Ilustração de Jorge Avalo e a onça-pintada. (Foto: Reprodução/Facebook)

No texto comovente, que já conta com mais de 2,2 mil compartilhamentos no Facebook, o caseiro é retratado como um “guardião” do Pantanal, que firma um pacto silencioso com a onça-pintada para que ambos convivam em harmonia.

Uma imagem feita com IA (Inteligência Artificial), compartilhada junto ao poema e que mostra Jorge e a onça sentados, reforça o imaginário da amizade improvável entre o pantaneiro e o maior felino das Américas.

“A partir daquele dia,
contam que Jorge virou mais guardião que morador.
Protegia árvores, soltava animais presos,
alertava os vizinhos:
‘A floresta tem dono, e não sou eu.’”Trecho do poema “O Encontro de Jorge e a Onça”.

Essa paz, no entanto, é quebrada após o trabalhador rural ser atacado por uma onça-pintada. Fica o mistério: seria a mesma onça, ou outro felino que não conhecia o “trato” entre o caseiro e o animal?

Conforme o escritor, o poema é uma alegoria da relação que o trabalhador teria estabelecido com os animais e com o próprio Pantanal ao longo dos anos vivendo no bioma.

“Se ele conviveu ali por muitos anos, se ele a filmava, se ele via a onça e ela via ele, eles acabaram criando esse relacionamento. Chegou a tal ponto dela ‘falar’ para ele que aquele lugar era dela e que ele não podia fazer nada que estragasse aquele lugar. E ele garantiu pra ela, pra onça, que ia preservar aquele lugar.”Carlos Gentil Vasconcelos, escritor.

Carlos Gentil é um defensor confesso do Pantanal e de suas riquezas. Professor de biologia aposentado, o escritor já publicou quatro livros infantojuvenis e está prestes a lançar o quinto.

Todos giram em torno da saga do “Zé Caré”, um jacaré que vive inúmeras aventuras ao lado de outros animais da fauna pantaneira. O personagem até faz parte de projeto educacional que estimula a preservação do Pantanal nas escolas de Aquidauana.

É por conta desse fascínio e respeito que ele acredita que o caseiro também sentia pelo Pantanal e por seus animais, que Carlos se posiciona contra a retirada da onça-pintada do bioma após o ataque a Jorge Avalo.

Design sem nome 2025 04 23T161846.603
Ilustrações do livro que conta a saga do Zé Caré. (Imagem: Arquivo Pessoal)

“O poema humaniza a relação desse pantaneiro com essa onça. Ele retrata a preocupação do Jorge em preservar o topo da cadeia alimentar, que é a onça, o jaguar. Porque se a onça morrer, se a tirarem de lá, como querem, isso causa um desequilíbrio. Quem ajuda a manter a saúde do Pantanal também é a onça. Ela faz parte do equilíbrio. É ela que mantém esse topo, essa cadeia e essa saúde do Pantanal.”Carlos Gentil Vasconcelos, escritor.

No poema, após sua partida, a alma de Jorge segue na missão de guardar o Pantanal:

“Porque no Pantanal,
quando um homem como Jorge parte assim,
em silêncio e com marcas de bicho,
vira parte da lenda.
E à noite, quando a lua reflete no brejo,
dá pra ouvir o rugido ao longe.
E quem conhece a mata diz:
‘É só a onça… ou talvez o velho Jorge, ainda vigiando.’”Trecho do poema “O Encontro de Jorge e a Onça”.

Confira o poema na íntegra 294449

“O Encontro de Jorge e a Onça”

No coração quente do Pantanal,
o céu se tingia de fogo ao entardecer,
e o Sr. Jorge, de boné desbotado e alma tranquila,
tomava seu tereré à sombra do ipê-amarelo,
sentado na varanda onde o rio ava calmo.

Era homem de fala mansa, olhar atento.
Sabia decifrar pegadas no barro
e escutava o canto dos bichos como quem lê poesia.

Naquela tarde, ela apareceu.
A onça-pintada, a senhora da mata.
Olhos de âmbar, corpo de ouro e sombra.
Parou diante dele como se viesse cobrar algo antigo.

— Homem… este chão me pertence.
Antes da tua casa, teus bois, teus trilhos…
Eu era o pulso da vida aqui.
Caço pra manter o ciclo.
Sou equilíbrio, sou alerta.
Mas teu mundo aperta o meu.

Jorge suspirou, puxou um gole longo de tereré,
e respondeu com respeito:

— Dona Onça, não sou invasor.
Tô aqui faz vinte anos,
não cerquei teu rio, nem furei tua caça.
Só cuido do que posso.
Divido, não domino.

A onça o fitou fundo,
e pareceu aceitar.
Virou-se e sumiu no mato
como se nunca tivesse estado ali.

A partir daquele dia,
contam que Jorge virou mais guardião que morador.
Protegia árvores, soltava animais presos,
alertava os vizinhos:
“A floresta tem dono, e não sou eu.”

Mas os anos aram.
E numa manhã de cheia,
encontraram a porta de sua casa aberta,
o tereré ainda gelado na guampa,
o boné pendurado num prego.

Nada fora levado.
Só Jorge havia sumido.

As marcas no chão eram claras:
pegadas de onça, duas — uma maior, outra menor.
Como se duas rainhas tivessem se cruzado ali.

Alguns dizem que foi a mesma onça,
vinda cobrar o que Jorge prometeu.
Outros falam de uma nova,
sem pacto, sem memória, sem piedade.

Mas ninguém ousa falar de tragédia.
Porque no Pantanal,
quando um homem como Jorge parte assim,
em silêncio e com marcas de bicho,
vira parte da lenda.

E à noite, quando a lua reflete no brejo,
dá pra ouvir o rugido ao longe.

E quem conhece a mata diz:
“É só a onça… ou talvez o velho Jorge, ainda vigiando.”

Carlos Gentil Vasconcelos

O ataque da onça-pintada ao caseiro 711254

O corpo de Jorge foi sepultado nesta quarta-feira (23), em Aquidauana, em caixão fechado e sem velório, após ar por uma série de exames periciais no Núcleo Regional de Medicina Legal de Aquidauana.

Jorge foi atacado por uma onça na tarde de segunda-feira (21), em uma propriedade na região conhecida como Toro Morto. A fazenda fica às margens do Rio Miranda, no Pantanal aquidauanense.

O corpo foi arrastado pela onça para o meio da mata fechada e os restos mortais de Jorge só foram encontrados no dia seguinte. Durante o resgate da vítima, o felino ainda atacou um dos homens que atuavam nas buscas e fugiu.

Equipes de ambientalistas retornaram à região em busca do animal, na expectativa de capturá-lo para “pesquisas”.